Era uma vez... 


@ O DESAFIO DO REI

lualua
Vivia um rei em seu esplêndido palácio, cercado de todo luxo e riqueza. Em sua mente, porém, havia somente um pensamento, e sua vontade era dominada por uma só coisa: comida.
Pela manhã, ao acordar, já chamava seus servos para que trouxessem todo o tipo de guloseimas e, como uma baleia, devorava tudo num só instante. Aquele homem era tão guloso que engolia qualquer espécie de comida colocada à sua frente: carne, arroz, tâmaras, ovos, figos, tudo enfim.
E assim, engordou tanto que não conseguia mais montar em seu cavalo. Raramente usava o camelo, pois o pobre animal, ainda que se sentisse honrado em ter na garupa aqueles 200 quilos de gordura reais, era obrigado a segurá-lo com muita força para ele não se esborrachar no chão e, portanto, o passeio não era muito confortável.
Um dia, o rei abandonou a idéia de sair do palácio real, pois estava se tornando perigoso subir na garupa do camelo. A gordura o tinha feito perder o equilíbrio. E então, daquele dia em diante, o rei passava todo o tempo deitado em sua cama, rodeado de escravos e de comida.
Os médicos da corte já haviam experimentado todos os tipos de remédio e de tratamento para livrá-lo daquela situação vergonhosa. Mas nada deu resultado.
O próprio rei entendia estar num beco sem saída. Pagaria qualquer quantia a fim de diminuir seu peso e voltar à vida de tempos atrás. Tentou até pedir ajuda a Alá; mas cada vez que começava a rezar, o rei ouvia uma vozinha que lhe sussurrava: "Por que, ao invés de perturbar o Senhor com esses pedidos tolos, não diminui um pouco a comida que engole continuamente?"

Aconselhado pelos sábios da corte, o rei enviou uma mensagem a todos os cantos de seu reino, próximos e distantes: "Ao médico que conseguisse curar a sua doença, o rei daria sua belíssima filha como esposa. Porém, se a tentativa fracassasse, o infeliz perderia a cabeça!"
Diante da ameaça, nenhum súdito se arriscou. Nem mesmo os médicos mais experientes quiseram se pôr à prova.
Certo dia um jovem foi ao palácio falar com o rei:
- Majestade, além de médico, sou também astrólogo. Sei interpretar o que dizem as estrelas. Se assim o desejar, passarei a noite conversando com o céu e certamente encontrarei um modo de tirar Vossa Majestade de toda essa agonia.
Diante de toda a segurança demonstrada pelo jovem, o coração do rei sentiu um grande alívio. Pela primeira vez, em muito tempo, estava se sentindo um pouco melhor. Então, ordenou que os servos colocassem à disposição do hóspede o quarto mais alto do palácio, que tinha um amplo terraço de onde, a qualquer momento, o jovem poderia sair para indagar tranqüilamente às estrelas.

Quando o jovem ficou sozinho no quarto, trocou de roupa e deitou-se, tranqüilamente. Em pouco tempo, o astuto astrólogo caiu no sono. Lá fora, ao alto, no escuro da noite, milhares de estrelas brilhavam alegremente, como um livro aberto que guardava estórias e lendas, mas que ninguém lia.
Na manhã seguinte os guardas bateram à sua porta. O jovem, acordando com aquele barulho todo, anunciou:
- Avisem ao rei que em uma hora levarei a resposta das estrelas.
O rei não pregou o olho a noite inteira. Ele também queria se levantar para ouvir, na escuridão, a linguagem do firmamento. Mas todos aqueles quilos e uma preguiça inabalável não permitiram que ele se levantasse. Agora, impaciente, sentado em seu imenso trono, esperava o momento de encontrar o jovem astrólogo. Se a resposta dele não fosse satisfatória, daria ordens aos guardas para cortarem sua cabeça.

Finalmente o jovem, escoltado pelos sábios da corte, chegou à sala do trono. Ajoelhou-se, beijou o anel do rei e, olhando bem dentro de seus olhos, disse:
- Majestade, a resposta das estrelas foi muito direta. O rei não precisa de remédios, pois tem apenas um mês de vida.
Enquanto o rosto do rei empalidecia com o susto, um longo "Oh!..." saiu de todos os presentes.
No silêncio que se seguiu, a voz do jovem soou, alta:
- Peço que me prenda. E se, ao trigésimo dia Vossa Majestade não estiver morto, ordene que cortem minha cabeça, como foi combinado!

Assim, o astrólogo foi trancafiado na prisão do palácio, e o rei perdeu completamente a paz. O medo fechou sua boca e ele não conseguia engolir nem mesmo um pedacinho de pão. A idéia da morte que se aproximava não o deixou mais sossegado, tanto que abandonou a cama e começou a andar por toda a casa, para lá e para cá.
Com o passar dos dias começou a ir até o jardim, a primavera chegou de repente, sem que ele desse conta. Pela primeira vez em sua vida admirava a beleza da natureza, suas cores e aromas; aspirava o perfume das flores com voracidade, como antes engolia em poucos minutos quilos e quilos de comida.
Assim, quase não se alimentava mais. A comida lhe dava nojo. Após duas semanas, já havia perdido muito peso, tanto que já era capaz de dar alguns passeios de camelo, sempre carinhosamente acompanhado pelos seus servos. Descobriu ângulos na cidade que jamais havia visto e, fora dela, encontrou paisagens maravilhosas que nunca prestara atenção. Até a areia do deserto transformou-se numa coisa bela de se ver, aos olhos do rei.
Voltou a andar a cavalo. Fez novas descobertas, trazendo a ele um bem-estar jamais sentido.
Como pode, Alá, o misericordioso, permitir a sua morte justamente agora que estava descobrindo as belezas da vida?

Da prisão, o jovem era informado pelo carcereiro de como andavam as coisas. Este lhe contava que fatos extraordinários estavam acontecendo no reino durante aquele período.
Um dia antes de completar um mês que estava na prisão, o astrólogo pediu para falar com o rei, que concordou em recebê-lo com satisfação. E assim se repetiu a cena de um mês atrás, o solene ingresso do jovem á sala do trono, a presença dos sábios, o beijo no anel... Só que desta vez havia uma novidade: o rei emagreceu tanto que no trono sobrava lugar para a princesa, que estava comodamente sentada ao seu lado.
Sem demonstrar qualquer embaraço, o jovem começou a falar:
- Majestade, se prometer que não serei punido, tenho uma coisa muito importante a revelar.
Obtida a promessa do rei, o jovem continuou:
- Quero que saibam, todos, que não sou nem médico nem astrólogo. Tive que enganá-los para que o rei pudesse curar-se. Se eu não mentisse, o tratamento não teria funcionado. O rei devia livrar-se das preocupações, daquele desejo incontrolável de comer, daqueles quilos de gordura que a cada dia o sufocavam mais e mais. O rei deveria descobrir a beleza da natureza, a alegria de viver... E foi exatamente isso que aconteceu. Vossa Majestade agora está completamente curado. Ninguém sabe quantos anos poderá viver ainda. Somente Alá pode contar nossos dias. Agradeço por vossa generosidade e peço mais uma coisa, que mantenha a promessa feita, dando a mão de vossa filha em casamento a quem curasse vossa doença.

Os presentes ficaram estupefatos com a sabedoria demonstrada por aquele desconhecido. A princesa olhava para o jovem com raiva e ao mesmo tempo com carinho, pois ficou feliz em saber que seu pai não morreria. O mais surpreso era o rei que, saltando do trono com a agilidade de um atleta, correu até o astrólogo e abraçou-o com entusiasmo e afeto.
- Daqui a oito dias celebraremos o casamento! - disse o rei. Assim, com estas palavras, estava concluída a aventura.

Lá no céu, bem do alto, até Alá parecia estar sorrindo: como eram estranhas aquelas suas criaturas, que passavam do desespero ao contentamento tão rapidamente...

O que esta fábula nos ensina:
Quando centralizamos nossas vidas no poder, no dinheiro e na ambição, corremos o risco de construir uma realidade falsa.
O dinheiro e o poder alimentam cada vez mais o mito da onipotência; acabamos pensando que nada mais nos é impossível! Até a morte, que é um muro intransponível, parece não existir mais! Trata-se de uma verdadeira loucura, porque, feito cegos pela mania de grandeza, não percebemos mais a beleza e a riqueza que a vida nos oferece a cada dia.
É muito melhor e mais bonito aceitar nossos limites e nossos pequenos defeitos! Assim, saberemos julgar com maior justiça e sempre viveremos com serenidade!


(Fábulas do Deserto, de Ettore Fasolini)
Agradecimentos à Rosemary que nos enviou esse conto.

 


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©1997-2002, Chave Mágica
by Leandro Amaral e Ricardo Namur
Ilustrações em aquarela: Sérgio Ramos